Direitos Humanos e Ética Médica

Mês da Bioética

10 out. 2017

O Raciocíonio Ético

 

O raciocínio ético passa pela capacidade de análise de um dilema ético. Uma das maiores dificuldades na promoção de um raciocínio ético adequado passa pelo facto do ser-humano ser altamente intuitivo. As intuições serão mecanismos inconscientes e automáticos, ainda que construídos ao longo da vida da pessoa, que visam mostrar com a rapidez possível o caminho a seguir. Inclusivamente fazem as pessoas sentir-se mais poderosas e efetivas, pelo que mais confiantes nas suas decisões, o que traz à evidência o papel das emoções na sua construção.

Então, será adequado afirmar que as emoções serão a base de um processo decisório importante e poderoso para promover indicações sobre aquilo que será melhor para o indivíduo em particular. Ou seja, as emoções ajudam o indivíduo a compreender o que será melhor para si próprio, seja num contexto individual ou social. Contudo, quando se trata de avaliar o que será melhor para o outro, só a razão permitirá o discernimento necessário, pelo que se constitui como a base do raciocínio ético na resolução de qualquer dilema. Ou seja, será a razão que potenciará a distinção entre aquilo que será bom para o próprio e o que será bom para o outro; a razão permitirá que o próprio não confunda o seu interesse com o interesse do outro ou, no limite, com aquilo que gostava que fosse o melhor para o outro. Uma avaliação emocional dará uma leitura correspondente ao que “eu” entendo que seria melhor se “eu” estivesse no lugar do outro. E, de facto, não é isso que se pretende. Respeitar a dignidade da pessoa humana é mais do que respeitar as diferenças, é ajudar a pessoa a afirmá-las, ajudar o outro na promoção da sua autonomia.

A verdade é que é perfeitamente possível entender os princípios da racionalidade – ou seja compreende-se a lógica e o cálculo das probabilidades, mas falha-se, muitas vezes, na sua aplicação prática à vida concreta. E porventura, naquilo que será o resultado dessa omissão, deve a pessoa estar apta a enfrentar as consequências daquilo que de positivo ou de negativo lhe trouxer esse afastamento das decisões mais racionais. Não é à toa que se afirma que todas as opções têm consequências positivas e negativas, pelo que em boa verdade, no que diz respeito à vida pessoal de cada um, é uma opinião bem defensável que mais do que a direção da decisão a tomar, o mais importante será mesmo decidir. E viver será isso mesmo, fazer opções que conduzem a novas encruzilhadas, com diferentes alternativas. Então, a pessoa é livre de assumir opções que possam ser “pouco” racionais, já que será o próprio a lidar com o resultado das mesmas.

Mas quando se implica o outro, ou melhor, quando se tenta optar no sentido do melhor interesse do outro e não de si próprio, como será exemplo o exercício de uma profissão ligada aos cuidados de saúde, então esta premissa torna-se menos acertada. Quando se assume a responsabilidade de prestar um serviço, exercer uma atividade, que visa o auxílio de uma terceira pessoa num determinado sentido, não se pode ignorar que o outro é diferente de nós. Só a razão permitirá aumentar a probabilidade de ajudar alguém a tomar as suas opções, que serão muito provavelmente diferentes daquelas que o próprio tomaria numa situação idêntica. As emoções, neste caso, auxiliam na compreensão do outro, facilitando o estabelecimento de verdadeiras relações de confiança que facilitam o conhecimento sobre a outra pessoa. Mas este re-conhecimento do outro terá que ser feito em bases racionais, pois as emoções potenciam a identificação e o “outro” é diferente de “mim”.

Então, a avaliação sentimental da realidade, ou seja, a reflexão sobre a resposta intuitiva poderá ser insuficiente. A procura do que poderá ser melhor para o outro só poderia ser conseguida, com maior probabilidade, se fosse puramente racional, que será como quem diz, sem a influência das emoções na aplicação da técnica aprendida para o auxílio da pessoa. A ideia seria afastar o profissional de si próprio e centrá-lo no seu paciente. A ideia seria que o profissional se desligasse da pessoa que é e passasse a ser “apenas” um profissional, ou seja alguém a funcionar orientado pelos princípios éticos orientadores da sua profissão e pelas normas e técnicas associadas. Com toda a sua historicidade, é certo, toda a sua formação, é verdade, mas apenas aquela que permitisse melhor ajudar a pessoa. No fundo, seria um profissional onde apenas o eu autobiográfico estivesse presente e em que o eu nuclear desaparecesse.

Está bom de ver que tal objetivo não é sequer possível, quanto mais realizável. E por isso mesmo se poderá dizer que todos os profissionais são imperfeitos, e que o erro faz parte do exercício profissional. Disso mesmo deve estar consciente cada profissional para que, nessa perspetiva, possa questionar o quanto baste a sua atuação no sentido de diminuir o risco de tomar decisões que prejudiquem o seu paciente.

Inteligência e ética não são necessariamente complementares; o mundo está cheio de exemplos de pessoas consideradas inteligentes cujo comportamento traduz ausência de valores éticos. Desta forma, não será descabido enfatizar que o que poderá distinguir um comportamento ético de um comportamento não ético será a compreensão genuína do outro em todas as suas diferenças e especificidades.

Compreender o outro implica, entre outras condições, o estabelecimento de uma relação empática. Caracteriza-se por um autêntico interesse pelo sujeito e pela sua aceitação como pessoa. O indivíduo não treinado na perceção auto-consciente das suas emoções, na capacidade de postergar impulsos e intuições e de lidar com eles, dificilmente conseguirá um grande sucesso ao nível das suas relações interpessoais. Estará muito mais centrado nos seus desejos e necessidades, o que não lhe permitirá a obtenção da habilidade para compreender as emoções alheias; para a compreensão do que é o humano.

No mais, a decisão do profissional deverá ser orientada por um corpo de princípios éticos que constituem a linha básica orientadora do pensamento do profissional ajudando-o a não se perder no oceano das suas emoções, navegando nele mas orientado em direção ao melhor interesse do seu paciente. Os princípios éticos poderão constituir-se como o contexto sócio-cultural do profissional, no fundo a sua homeostasia alargada à sua formação técnica e profissional. No fundo, o mesmo papel que os valores fundamentais da pessoa, como sejam os direitos humanos, se constituem para as pessoas em geral.

Considerando as limitações naturais, que as intuições promovem, que todos temos para levarmos a cabo decisões profissionais  – necessariamente éticas – adequadas estão definidos alguns cuidados que os profissionais deverão considerar para um exercício adequado da sua profissão.

Em primeiro lugar (1) um profundo auto-conhecimento. Importa que o profissional se conheça muito bem. Este autoconhecimento limitará a influência que aquelas áreas que ele sabe serem mais difíceis para si poderão ter na sua relação com o paciente. Em segundo lugar,  (2) a formação de excelência: não lidamos com buracos no nosso conhecimento pelo que se a formação do profissional não for excelente, tiver lacunas, ele irá preencher esses buracos com a sua experiência pessoal, promovendo a interferência da sua vida na compreensão da pessoa. Ou seja, o profissional necessita de uma formação de excelência no sentido de conseguir com facilidade, de uma forma quase intuitiva, aplicar a sua competência profissional na compreensão da pessoa, e limitar a influência da sua experiência pessoal. Finalmente  (3) a experiência: não há profissionais, ou melhor, bons profissionais sem experiência. A experiência é que nos vai ajudar a conseguir integrar todas as dimensões de avaliação e compreensão da pessoa. São muitas as variáveis envolvidas pelo que será muito difícil conseguir envolve-las de uma forma fluída no estabelecimento de uma relação de confiança. Apenas a experiência o permitirá. Daí a importância da supervisão na fase inicial do trabalho do profissional, e sempre que se pretender intervir em dimensões para as quais não se detenha ainda a experiência suficiente. A  (4) humildade será uma característica central do profissional de saúde. Passa por uma atitude responsável nas decisões e no reconhecimento das limitações pessoais. Por muito autoconhecimento que detenha, por muito bem formado e muito experiente que seja, deve ter em consideração que todas as hipóteses construídas sobre a compreensão do outro são falíveis. Não só porque a ciência é duvidosa, mas também porque, sendo impossível desligar-se das suas experiências pessoais, estas terão sempre influência nas suas leituras do outro, tornando-as ainda menos objetivas. Deverá pois sempre deixar “saídas de emergência” para que a pessoa não entenda não ter outra saída se a intervenção falhar. Finalmente (5) a intervisão. Solicitar a ajuda de outros profissionais que garantam outras perspetivas do dilema em questão. Ou seja, se uma das características da pessoa é que esta é única, diferente de qualquer outra, a sua complexidade não tem limites, pelo que a sua compreensão deve ser feita da forma mais rica possível. Todos estamos sujeitos a mecanismos de simplificação da informação, que visam facilitar o encontrar de soluções e a tomada de decisão. Quanto mais experiência um profissional tiver, maior tendência poderá ter em compreender o outro em função de situações anteriores. Logo, poderá acabar por tentar enquadrá-lo em modelos compreensivos que, se muito úteis, poderão reduzir a compreensão da pessoa na sua diversidade. Discutir com outros colegas, com os pares, as suas interpretações, as propostas de intervenção torna-se central na decisão profissional. No fundo, colocar-se em causa, ouvir outras perspetivas, enriquecendo a sua compreensão da pessoa e diminuindo a influência dos normais processos de simplificação, de visão em túnel do outro. Aceitar, por isso, com naturalidade, a importância do paciente obter, quando assim o desejar, uma segunda opinião.

Deste modo estarão garantidas as bases fundamentais do exercício do raciocínio ético e a aumento da probabilidade de promover decisões profissionais mais adequadas.

 

Miguel Ricou

Professor Auxiliar e Investigador-coordenador no Departamento de Ciências Sociais e da Saúde da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto

 

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